Ô, meu velho! Apesar da falta que sinto de tantas coisas, eu sei que você precisava ir. Você se agarrou a tudo que pôde. Sei que já não tinha forças para lutar contra o movimento avassalador e constante que é a vida. Imagino que essa é uma característica comum aos velhos: ter medo da metamorfose, o casulo é mais seguro.
As coisas mudaram tanto... Deixe-me contar sobre o meu tempo. Hoje em dia, meu velho, é preciso muita coragem para falar: as pessoas andam tão magoáveis. Em seu tempo, podia-se ser natural, com algumas restrições. Hoje, a naturalidade é a exceção. Nem tudo é como você imaginava. Seus sonhos, de tempos de liberdade, eram ilusões, pode ter certeza. A cada ano que passa, as obrigações aumentam. Ah, como era bom o seu tempo! E você nem percebia. Não há como explicar, pois são pontos de vista diferentes e, ainda, julgar o passado com olhos do presente é sempre duvidoso.
Espero que se sinta feliz por receber minha atenção. Hoje as pessoas parecem esquecer que seus velhos já existiram. E, caso se lembrem, esquecem-se do aprendizado que deixaram e de compreendê-los. Gostam de recordar histórias, geralmente as que seus velhos estão na posição de heróis ou pobrezinhos. As pessoas costumam contar histórias de heróis para se orgulhar e histórias de pobrezinhos para justificar o sentimento de fracasso, culpando o “cruel destino”.
Meu velho, percebi que quando não me conheço no ato, em você posso encontrar o esclarecimento. Quando choro sem motivo, posso encontrar em você a razão. Como posso recalcar, esquecer – como a maioria faz –, se você ainda motiva minhas emoções?
Oh, meu velho, meu velho eu, meu eu da infância, o eu que já fui... em algum momento você se perdeu de mim... e eu não sei quando! Nem sei se foi de repente, em uma situação qualquer, ou se a vida foi me mudando aos poucos e, sem que eu notasse, foi me distanciando de você. Não sei. Só sei que hoje, num relâmpago de lucidez, olhei-me no espelho e, procurando, não o enxerguei. Então, buscando desesperadamente fotos antigas, não reconheci a mim. O que vi foi um “você”!
Oh, doce ser! Perdoe essa personalidade forte e dura que tomou o seu lugar, atropelando seus sonhos e esperanças. Para mim, ainda mais triste que ter atropelado os sonhos é ter atropelado a sua capacidade de sonhar. Acho que não sei mais fazer isso (neste momento, você diria: “você pode tudo!”. Jamais conheci poder maior que a sua fé!).
Agora, eu me sinto organizando meu interior: fazendo um balanço das perdas e ganhos. Quem sabe o “eu escritor” seja simplesmente o tal “superego”; ou um “alterego” metido a filósofo e psicólogo de si; ou, ainda, o velho eu, só que mais velho ainda, nostálgico e saudosista; talvez eu seja você, velho eu, em tamanho maior, vivendo do jeito que me ensinaram que alguém, em tamanho maior, “deve” viver; tendo emoções “aceitáveis” e desejos considerados normais só porque todos, em tamanho maior, têm. Ou, talvez, eu seja somente um eu que hoje, ao acordar, já não é o mesmo eu que adormeceu... não sei! Não sei! Quem sabe, a identidade nada mais seja que memória... ou que interpretação de si mesmo, ou ainda, um “eu-personagem”, inteligentemente arquitetado como forma de adaptação ao ambiente... E como agora meus horizontes estão se expandindo, a personalidade talvez esteja precisando de alguns ajustes.
Eu vim de você – de tudo o que você viveu, pensou, viu, ouviu, sentiu, do que escolheu, de como agiu, com quem conviveu e de que forma conviveu –, como também, acredito eu, virão outros de mim, sucessivamente... Quem sabe não haja limite para isso! Mas eu creio que, embora tente a todo custo me compreender e descobrir quem eu sou, somente serei capaz de enxergar minha verdadeira “face” quando a carne não mais estiver entre o Eu e o Espelho.
Com toda a compreensão de que, agora, disponho e necessito.
Eu! Nós! Você!
Jeice Campregher
Dedicatória: Pode parecer narcísico que alguém, com a oportunidade de escrever aos outros, escreva uma carta a si mesmo. Mas, nessa primeira análise, esquecem-se de que a formação de quem se é depende também (talvez, principalmente) da convivência com os outros. Dedico a carta aos maiores formadores do (s) meu (s) eu (s): Minha Família (os Darugna e os Campregher)! A eles, devo quem sou hoje e, por eles, todo dia procuro ser melhor. Aos meus amados amigos – quase irmãos – que sempre tenho em meu coração. E, ainda, a meu professor e amigo, Dr. Osmar de Souza. A todos vocês, meu muito obrigada... por tudo! Como Shakespeare escreveu, “a gratidão é o único tesouro dos humildes”.
Jeice Campregher – nasceu em Blumenau, SC, formada em Letras pela Universidade Regional de Blumenau (FURB), mestranda em Educação, professora, revisora de textos, copidesque e webwriting.